"[...] Desta perspectiva em que a cultura e liberdade se fundem como
condição de espírito, derivaram as variantes da sua reflexão filosófica
posta em vários ensaios e em ficção mesmo científica. Resoluto acusador
do vírus mediocrático a que são vulneráveis as democracias, incansável
foi o seu pugnar pelo desbravamento da cultura sequestrada pelos
poderes, pois entendia o sujeito cultural como lídimo intérprete do
sentido finalista da evolução humana: o espírito irradiando na
culminação da liberdade. E, sublinhe-se, liberdade e nobreza de conduta
eram o timbre desse maravilhoso amigo que, na solidão do seu horror a
fachadas que apregoam falsos valores, era o mais solidário dos homens
com o que ainda vale a pena no mundo", escreveu Natália Correia no obituário de Romeu de Melo em Dezembro de 1991.
Romeu de Melo (1933-1991), licenciado em economia, legou-nos uma extensa
obra filosófica, de ensaio e de ficção, abrangendo vários temas de
considerável importância social, política e científica. Viveu muitos
anos em Mértola, onde o conheci no início da década de 1950 ainda na
minha infância. A despeito de ter mais doze anos do que eu,
estabeleceu-se entre nós, desde então, uma amizade para a vida. No meu
3º ou 4º ano do liceu, deu-me algumas explicações de álgebra e geometria
seguindo os livros do matemático J. Jorge G. Calado (pai de Jorge
Calado, futuro químico, professor do IST, e colunista de arte e de
ópera). Romeu falava-me a propósito, com entusiasmo contagiante, sobre a
hipótese, o axioma e a tese, rabiscando algumas notas nas margens dos
meus livros. E, num desses dias, sentado à secretária da sua recheada
biblioteca, disse-me: "Amicus, vou ler-te um conto!" e, pegando numas
folhas datilografadas, começou com voz grave, cavernosa e misteriosa:
"O rapazinho estudioso sentiu um estremecimento interior, e ficou a pensar se seria aquele o sinal.
Ele temia um sinal, mas não sabia qual a sua forma nem a sua cor... As suas convicções tinham de ruir, e um monstrozinho interior - a decepção e o descrédito dos outros - havia de surgir-lhe na sua frente, para lhe dizer:
- Acorda! Todos os ideais da tua juventude se consumiram...
- Acorda! Acorda! Já és um homem.
E depois, pensava o rapazinho estudioso, o monstro havia de aparecer na sua frente, bamboleando-se como um arlequim pantomineiro, com os guizos a chocalharem e o seu chapéu de muitos bicos a dançarem-lhe na cabeça. E diria ainda:
- Estás acordado? Então, rapazinho estudioso, vai dizer pelo mundo que os que costumam sonhar - como tu fazias - ainda terão de haver-se comigo. Diz-lhes que lhes aparecerei na frente, para contar- lhes uma história feia, e convidá-los a abrirem os olhos da maturidade e da experiência.
Passados uns minutos de angústia, o menino estudioso revoltou-se contra aquela sua imagem... Quis expulsar de vez o monstrozinho que ele nesmo criara dentro de si, e gritou - lá para dentro do seu íntimo:
- Vai-te monstro! E vai tu dizer, aos jovens de todo o mundo, que eu serei eternamente jovem. Diz-lhes que eu nunca «abrirei os olhos» para desconfiar dos homens, e viver num mundo de esclarecida mesquinhez.
Anda ! - gritou com mais força, para dentro de si . - Vai contar a todo o mundo que jamais serei adulto..."
"O rapazinho estudioso sentiu um estremecimento interior, e ficou a pensar se seria aquele o sinal.
Ele temia um sinal, mas não sabia qual a sua forma nem a sua cor... As suas convicções tinham de ruir, e um monstrozinho interior - a decepção e o descrédito dos outros - havia de surgir-lhe na sua frente, para lhe dizer:
- Acorda! Todos os ideais da tua juventude se consumiram...
- Acorda! Acorda! Já és um homem.
E depois, pensava o rapazinho estudioso, o monstro havia de aparecer na sua frente, bamboleando-se como um arlequim pantomineiro, com os guizos a chocalharem e o seu chapéu de muitos bicos a dançarem-lhe na cabeça. E diria ainda:
- Estás acordado? Então, rapazinho estudioso, vai dizer pelo mundo que os que costumam sonhar - como tu fazias - ainda terão de haver-se comigo. Diz-lhes que lhes aparecerei na frente, para contar- lhes uma história feia, e convidá-los a abrirem os olhos da maturidade e da experiência.
Passados uns minutos de angústia, o menino estudioso revoltou-se contra aquela sua imagem... Quis expulsar de vez o monstrozinho que ele nesmo criara dentro de si, e gritou - lá para dentro do seu íntimo:
- Vai-te monstro! E vai tu dizer, aos jovens de todo o mundo, que eu serei eternamente jovem. Diz-lhes que eu nunca «abrirei os olhos» para desconfiar dos homens, e viver num mundo de esclarecida mesquinhez.
Anda ! - gritou com mais força, para dentro de si . - Vai contar a todo o mundo que jamais serei adulto..."
Eu, boquiaberto, bebia-lhe as palavras. O que era isto?... O rascunho da sua estreia na ficção, em 1959: "AK: a Tese e o Axioma".
Um de outros temas a que se dedicou foi a filosofia política. Por exemplo, na antologia "Os Intelectuais e a Política", após explicar o seu conceito de intelectual (onde concluí que não é intelectual quem quer, mas quem é, e que a intenção e ação permanente do verdadeiro intelectual é a busca da verdade), interroga-se: não querem os intelectuais governar? ou não podem governar? A resposta é longa, porventura polémica, dizendo, entre muitos argumentos, o seguinte:
"[...] Parece-nos, pela sequência dos raciocínios expostos, que os intelectuais governam sempre, ainda que de diversos modos. Mas que o grau de intelectualidade está mais ou menos relacionado com as formas possíveis de governação, ou seja, quanto mais intelectual é um homem, mais adequado lhe é um determinado tipo de governação e orientação. Se é um grande intelectual, tenderá a fugir da «praça pública», com disse Nietzsche, para procurar a crista da montanha remota de onde desferirá os dardos que, transmutando-se através de outras e mais outras formas de conhecimento e de acção, irão atingindo o mundo do real e das relações humanas. Os grandes intelectuais predicaram religiões e morais; os intelectuais menos dotados, normalmente, reservaram para si os papéis de juristas ou de doutrinadores políticos. Os mais-intelectuais lançaram as bases de concepções do mundo, ou os fundamentos das ciências; os menos dotados fizeram experiências práticas e inventaram engenhos (ressalvem-se aqui os casos de um Arquimedes ou de um Galileu, entre outros). Não estamos a postular, é claro, mas simplesmente a buscar linhas mestras que nos ajudem a clarificar o problema [...]".
"[...] Parece-nos, pela sequência dos raciocínios expostos, que os intelectuais governam sempre, ainda que de diversos modos. Mas que o grau de intelectualidade está mais ou menos relacionado com as formas possíveis de governação, ou seja, quanto mais intelectual é um homem, mais adequado lhe é um determinado tipo de governação e orientação. Se é um grande intelectual, tenderá a fugir da «praça pública», com disse Nietzsche, para procurar a crista da montanha remota de onde desferirá os dardos que, transmutando-se através de outras e mais outras formas de conhecimento e de acção, irão atingindo o mundo do real e das relações humanas. Os grandes intelectuais predicaram religiões e morais; os intelectuais menos dotados, normalmente, reservaram para si os papéis de juristas ou de doutrinadores políticos. Os mais-intelectuais lançaram as bases de concepções do mundo, ou os fundamentos das ciências; os menos dotados fizeram experiências práticas e inventaram engenhos (ressalvem-se aqui os casos de um Arquimedes ou de um Galileu, entre outros). Não estamos a postular, é claro, mas simplesmente a buscar linhas mestras que nos ajudem a clarificar o problema [...]".
Assim era Romeu de Melo, polémico, de humor subtil por vezes cáustico, um magistral contador de histórias, um filósofo, ensaísta e ficcionista brilhante e, acima de tudo, "o mais solidário dos homens com o que ainda vale a pena no mundo" como disse Natália Correia. Teve uma influência indelével no meu gosto pela filosofia, história e ficção. Que estavam sempre presentes, também, nos nossos saudosos passeios e banhos no rio Guadiana, durante as tardes escaldantes do verão em Mértola, na companhia de outros amigos e amigas, em particular da sua irmã mais nova, Isabel Melo (futura médica), minha colega até ao 5º ano do liceu no Externato D. Sancho II. As Azenhas de Mértola era um dos sítios preferidos do rio, onde Romeu adorava meditar e escrever.
Encontrámo-nos pela última vez em Novembro de 1991. Num almoço memorável com as minhas colegas Raquel Gonçalves-Maia e Lídia Albuquerque. Ofereceu-me os três volumes das suas "Reflexões", com um brilhozinho nos olhos e palavras afetuosas. No mês seguinte, partiu a caminho do espaço etéreo. Até sempre, Amicus!
Rio Guadiana querido... imagens do meu olhar...
Fernando Fernandes, Romeu de Melo e António Fernandes; Azenhas, Agosto 1953
Ricardo Lopes, Luísa Sales, Dr. Sales (junto do borrego), Romeu de Melo, Manuela Rodrigues, Victória Melo e Isabel Melo; Azenhas, Setembro 1958
Fernando Fernandes e Romeu de Melo; abaixo da Casa Amarela, Agosto 1959
~1960
em "Reflexões", 1991
Diário de Notícias, 19/12/1991
Referências
[1] Romeu de Melo, "AK: a Tese e o Axioma", Porto, 1959.
[2] Romeu de Melo, "Ensaio sobre a Cultura", Editorial Presença, 1963.
[3] Romeu de Melo, "Os Intelectuais e a Política", Editorial Presença, 1964.
[4] Romeu de Melo, "Reflexões-1. Política, Filosofia, Sociologia, Antropologia", Publicações D. Quixote, 1986.
[5] Romeu de Melo, "Reflexões-2. A Natureza da Guerra, A Fenomenologia da Guerra e Outros Ensaios", Publicações D. Quixote, 1986.
[6] Romeu de Melo, "Reflexões-3. Filosofia Política, Sociologia, Cultura Portuguesa, Temas Literários", Editorial Notícias, 1990.
[7] Em Memória de Romeu de Melo, 2013.
[2] Romeu de Melo, "Ensaio sobre a Cultura", Editorial Presença, 1963.
[3] Romeu de Melo, "Os Intelectuais e a Política", Editorial Presença, 1964.
[4] Romeu de Melo, "Reflexões-1. Política, Filosofia, Sociologia, Antropologia", Publicações D. Quixote, 1986.
[5] Romeu de Melo, "Reflexões-2. A Natureza da Guerra, A Fenomenologia da Guerra e Outros Ensaios", Publicações D. Quixote, 1986.
[6] Romeu de Melo, "Reflexões-3. Filosofia Política, Sociologia, Cultura Portuguesa, Temas Literários", Editorial Notícias, 1990.
[7] Em Memória de Romeu de Melo, 2013.
Fernando M.S. Silva Fernandes
(Republicação com a devida autorização do autor, tendo sido originalmente publicado em 22 de Março de 2014 no blog "Ciência e Filosofia")
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