EM MEMÓRIA DE ROMEU DE MELO
Faria hoje, se fosse vivo, 80 anos o meu grande amigo Romeu de
Melo. Não quero deixar passar em claro esta efeméride porque a ele devo
muito do que sou em matéria de conhecimento e de formação. Conheci o
Romeu por volta de 1957, tinha eu 16 anos e ele 24. Cursava Economia,
estava a cumprir o serviço militar e preparava então o seu primeiro
livro que intitularia de AK - ...A Tese e o
Axioma que seria publicado em 1959, no Porto. Desde o primeiro encontro,
na casa do pai, em Mértola, que se estabeleceu entre nós uma profunda
amizade e um respeito mútuo que sempre levou em consideração as
divergências e as opiniões de ambos. A tal ponto que nunca nos tratámos
por “tu”, criando uma fórmula que perdurou através dos anos de “Mister”.
Em todos os seus livros, que guardo religiosamente, as suas
dedicatórias manuscritas começam sempre por “ Ao Mister Frazão…”. Nesse
ano de 1957 frequentava eu o 6º ano do Liceu, em Beja, e começara a
estudar uma das disciplinas curriculares, a Filosofia. Como sempre
gostara de História e como a primeira abordagem aos temas filosóficos se
iniciavam pela Grécia, berço da Filosofia, desde logo ficara preso a
tais temas. Nada melhor que ter, nesta iniciação, contactado com o Romeu
porquanto todo o seu campo de interesses se centrava, exactamente, no
âmbito filosófico. Dotado de excepcional inteligência, com uma
capacidade de memorização que só nele conheci e incansável na leitura e
pesquisa de autores nacionais e estrangeiros na área da filosofia, foi
ele o meu mentor que me abriu caminho nesta senda, nunca terminada, do
prazer do conhecimento. Mas, ao mesmo tempo, o Romeu era um analisador
de caracteres, com um imenso espírito de humor, contagiando todos os que
com ele conviviam, sempre com um sorriso bonacheirão que lhe iluminava
os olhos e lhe dava a aparência de um buda em constante regozijo com a
vida, imagem acentuada pela careca que sempre lhe conheci. Romeu de Melo
foi um filósofo, no verdadeiro sentido da palavra, vendo na Filosofia a
área do conhecimento que “cumpre a captação do ser na sua
integridade…ao responder às questões cardeais tais como: o que é o ser? o
que é a verdade? qual o valor da existência? qual o mundo que deve
ser?” (in Reflexões: Antropologia-Filosofia-Política-Sociologia,
Arcádia, 1981); foi um ficcionista que escreveu vários contos e
organizou antologias de ficção científica (A Buzina, AK-A Tese e o
Axioma, Não lhes Faremos a Vontade e 2 volumes com Alguns dos Melhores
Contos de Ficção Científica) em todos eles privilegiando o primado da
inteligência, humana ou extraterrestre, sobre a “cultura das massas”.
Neste particular diz Álvaro Holstein que Romeu foi “o pai da ficção
científica portuguesa” e para este remeto quem queira ter uma síntese da
sua ficção; foi um crítico da época entre 1977/1980 ao escrever uma
série de crónicas publicadas no Jornal Novo e em A Tarde onde pontifica a
figura caricata do Januário e com a qual aborda uma série de situações
que, então, se viviam no Portugal pós-revolucionário. A segunda parte
desta compilação de crónicas, intitulada de O Reino Original, com
artigos entre 1974 e 1983, é de cariz eminentemente político que ele
apelidou de “O Espólio de Januário”. Muito mais foi Romeu de Melo na
sua vida de escritor, pensador, economista, filósofo e romancista
ficcional. Tem uma vasta obra publicada mas, como todos os intelectuais
deste país, está ostracizada, ainda que seja tão actual hoje como no
tempo em que foi publicada. Pena que as gerações actuais não cultivem o
gosto pela leitura e pela Filosofia. A cultura portuguesa perdeu um dos
seus maiores expoentes desta tão maltratada área do pensamento, a
Filosofia, e não mais vi reeditadas as suas obras nem mesmo nestes
areópagos modernos que são as redes sociais e a internet. Nem na
Wikipédia existe uma referência desenvolvida do autor ou do seu
pensamento existindo somente uma referência a algumas obras publicadas
na Bibliowiki.
Não posso deixar de referir aqui algumas das facetas
menos conhecidas do Romeu. Muitas coisas aprendi com ele e uma das não
menos importantes foi a de apreciar o humor de Hergé, o famoso criador
de Tim-Tim. Recordo com muita saudade as horas que levávamos a ler as
muito interessantes e não menos educativas aventuras do jornalista belga
e de Milou, algumas das quais eu já lera em revistas de BD como o
Cavaleiro Andante. Curiosamente no livro O Reino Original a última das
suas crónicas é sobre Hergé no dia da morte deste belga que deu muito ao
mundo da BD. Para esse artigo remeto os interessados porque é um
verdadeiro hino ao genial homem que criou tão magníficas figuras que o
Romeu resume numa frase paradigmática. “Esquecíamo-nos de que Tim-Tim
era um desenho, uma entidade artificial: Tim-Tim era vivo, Tim-Tim
éramos nós.” Era, aliás, com este espírito que o riso franco, aberto e
contagiante do Romeu nos incentivava a apreciar tanto Hergé como todas
as coisas boas da vida. É deste seu riso, da sua boa disposição, da sua
jovialidade e da sua sempre boa vontade em levar pelos encantos da
Filosofia e da ficção científica que hoje lhe presto esta pequena
homenagem. Em 1991, pelos idos de Dezembro, se não me falha a memória,
levou para esse “assento etéreo”, onde sempre a sua imaginação
deambulou, toda a sua humanidade, bondade e saber ao serviço de outros
valores que ainda não estão descobertos mas que ele, agora, já dominará.
Até sempre, meu querido e saudoso Amigo.
Manuel Frazão 12 Abril 2013 - no seu FB